Serva à frente das fitinhas que o tetravô difundiu: curiosidade pela história dele só foi despertada em 2012

Serva à frente das fitinhas que o tetravô difundiu: curiosidade pela história dele só foi despertada em 2012

O leitor que, como o autor destas linhas, atraído pelo subtítulo, procurar nesta obra a biografia de Silva Serva, poderá ficar frustrado. A obra não é uma biografia. É algo diferente. É um livro-reportagem que narra a pesquisa pelo autor, o jornalista Leão Serva, de novas informações sobre a figura de Silva Serva, seu antepassado, e também de uma procura das próprias raízes.

Manoel Antonio da Silva Serva, comerciante português, instalou-se na Bahia no fim do século XVIII. Vendia “trastes” domésticos e livros. Em 1811 fundou uma tipografia, a segunda instalada no Brasil depois da chegada da Corte portuguesa ao Rio em 1808, e o jornal “Idade d’Ouro do Brazil”, o segundo periódico publicado no país e o primeiro por um empresário particular. Lançou também, em 1812, “As Variedades ou Ensaios de Literatura”, a primeira revista brasileira, e tornou-se um importante impressor e editor de livros.

É uma figura de relevo na história da imprensa, objeto de vários livros, teses e dissertações, mas a afirmação do subtítulo de que foi o precursor da imprensa no Brasil parece exagerada.

Alguns de seus descendentes continuaram no setor gráfico e editorial. Um Serva médico esteve na Guerra do Paraguai, foi morar em São Paulo e não voltou à Bahia, onde, depois de várias gerações, o nome da família praticamente desapareceu.

Em 1911, por ocasião das comemorações do primeiro centenário da imprensa na Bahia, Octavio Mangabeira, político que seria governador do Estado, lamentava “a família quase extinta, que dorme no anonimato”. Isto é: não havia nenhum Silva Serva na Bahia e os baianos desconheciam a existência dos Serva de São Paulo.

Em São Paulo, Leão Serva ouvia seu pai, Jayme, contar a história, ouvida de seu pai, de um Serva tipógrafo, que chegara ao Brasil com a família real trazendo uma tipografia e instalou a primeira impressora de livros do país.

No fim dos anos 1970 ou começo dos 80, o bibliófilo José Mindlin perguntou a Leão a origem do sobrenome, ouviu sua história, corrigiu o enredo, apenas parcialmente certo, da chegada do seu antepassado ao Brasil e deu-lhe um livro sobre as atividades de Manoel Antonio da Silva Serva. Mas essa faísca acendida por Mindlin não despertou a curiosidade de Leão Serva. Quem passou a correr atrás das raízes familiares foi seu pai, que procurou e entrou em contato com vários Serva, fez uma árvore genealógica e descobriu que o fundador do “Idade d’Ouro” era seu trisavô e seu avô, também Jayme, tinha sido editor de jornais.

A curiosidade de Leão Serva somente foi despertada em 2012, uns 30 anos depois do encontro com Mindlin, quando foi convidado pelo historiador baiano Luis Guilherme Pontes Tavares a participar, como “tataraneto e jornalista”, das comemorações do segundo centenário da primeira revista brasileira, “As Variedades”. Percebeu que em São Paulo quase nada se sabe sobre Silva Serva fora do mundo acadêmico e na Bahia a existência de seus descendentes diretos causava surpresa até mesmo para os estudiosos da obra do empreendedor português: “Decidi, então, escrever sobre o assunto”.

Com a orientação de Ponte Tavares, Leão Serva entrou em contato com historiadores e pesquisadores, procurou documentos em bibliotecas e arquivos, e fez descobertas importantes. Esse trabalho compõe a essência desse livro-reportagem.

O ponto de partida de seu périplo foram as obras, já clássicas, de Renato Berbert de Castro e de Marcello e Cybelle de Ipanema sobre a primeira tipografia na Bahia e as obras impressas por Silva Serva, e de Maria Beatriz Nizza da Silva a respeito do “Idade d’Ouro do Brazil”.

Em lugar de utilizar essas fontes, discuti-las e acrescentar dados novos para escrever a biografia que o autor desta resenha achou que o livro prometia, Leão Serva preferiu procurar dados novos, iluminar alguns pontos obscuros, corrigir outros e juntar informações já conhecidas, mas dispersas, unindo os fios soltos e “encaixando” as peças de forma coerente numa narrativa.

Nessa tarefa, em que não imaginava que chegaria a encontrar documentos e informações inéditas, o autor descobriu que “navegar pela história dos jornais é muito interessante”. O resultado é uma pequena obra, bem escrita, fácil de ler e curiosa mistura de história e jornalismo.

Ele visitou o Arquivo Público da Bahia, onde, seguindo uma trilha indicada pelo historiador Pablo Antonio Iglesias Magalhães, encontrou uma escritura que confirma a presença de Silva Serva em Salvador no começo da década de 1790. “Até minha visita, possivelmente não havia conhecimento dessa escritura, ao menos entre os estudiosos da imprensa baiana”, diz Leão Serva. Mas ele ficou chocado com o estado do prédio que abriga o arquivo, construído no século XVI pela Ordem de Jesus: “Tem problemas no telhado e na fiação elétrica, e até as obras de reparo são uma ameaça ao acervo”. Segundo reportagem da “Folha de S.Paulo”, trabalha há três anos sem energia elétrica por receio de que um curto-circuito possa causar um incêndio no local.

No Rio, o autor esteve na Biblioteca Nacional, onde Ana Virgínia Pinheiro, do setor de obras raras, preparou um catálogo de 92 obras da Typographia Manoel Antonio da Silva Serva e suas sucessoras, incluindo várias publicações que não constavam dos catálogos anteriores do acervo da biblioteca. Tinham classificação incorreta e só com muita paciência foram localizadas.

Até os anos 1960 várias obras pequenas eram encadernadas juntas num único volume, mas identificadas apenas com o nome da primeira publicação – as outras foram ignoradas nos catálogos. Houve que procurar as obras impressas por Silva Serva em volumes que continham publicações da época. Havia também títulos errados: “Tratado de Operações de Banco”, de 1817, estava classificado como “Tratado de Tabaco”.

Essa prática de encadernar várias obras em um único volume fez que uma das mais preciosas e raras obras do acervo da Biblioteca Nacional, a “Copia der Newen Zeytung ausz Presillg Landt”, do começo do século XVI, fosse colocada no meio de um volume com outras publicações em alemão.

A Biblioteca Nacional fez uma análise de “materialidade”, examinando os elementos físicos das obras impressas pela tipografia de Silva Serva, como tipo de papel, tipologia das letras etc. Esse exame levou o professor Alexandre Salomón a decidir pela inclusão ou exclusão de obras do catálogo preparado pela Biblioteca Nacional.

Negociante, Silva Serva exagerava na qualidade de seu estabelecimento gráfico. Escreveu ao príncipe-regente d. Pedro que um prelo de madeira que mandara construir na Bahia, “em nada cede aos que mandou vir de Lisboa, mas antes na opinião dos entendedores lhe é muito superior pela perfeição das peças, pelo arranjo e disposição da máquina e pela maior facilidade de execução”. A respeito dos caracteres gráficos, disse ter “mandado vir de Inglaterra e de Portugal abundante cópia de tipos da mais elegante fundição e variedade”.

Na verdade, a qualidade gráfica da tipografia de Silva Serva na Bahia era precária. Segundo o exame feito pela Biblioteca Nacional, o texto das obras é compacto e de leitura difícil, com impressão em desalinho ou defeituosa, papéis de qualidade inferior, tintas que borram, textos com falhas, “que levam a crer que as publicações foram projetadas para uma vida efêmera”.

Bem diferente da excelente qualidade dos trabalhos da Impressão Régia, fundada no Rio em 1808, da qual escreveram Ana Maria de Almeida Camargo e Rubens Borba de Moraes: “Ficamos admirados com a qualidade dos impressos. São composições de um bom gosto, de uma sobriedade de fazer inveja aos nossos impressores atuais. Raramente, mas muito raramente na verdade, a tipografia brasileira atingiu um padrão tão alto de elegância e beleza”.

Pesquisas de Pablo Iglesias Magalhães revelaram a existência de um livro impresso por Silva Serva, “Arte da Grammatica Portugueza”, de 1811, que não constava de nenhum catálogo. Ele o encontrou num sebo de Lisboa e pagou a surpreendente quantia de € 30 – no mesmo sebo comprou volumes das primeiras edições dos “Sermões” do padre Antonio Vieira por € 70.

Iglesias Magalhães também achou em Lisboa o rastro de outro Silva Serva, Manoel José, desconhecido até então pelos historiadores da imprensa baiana. Acha que eram, talvez, irmãos.

Quando Manoel Antonio da Silva Serva quis contratar um impressor português para sua tipografia de Salvador, colocou um anúncio na “Gazeta de Lisboa” convocando os candidatos para uma entrevista num prédio da praça do Rossio, no centro dessa cidade. Era o mesmo endereço de uma livraria de Manoel José da Silva Serva. Foi levantada a hipótese de que Manoel Antonio, que já vendia no Rio os livros que imprimia na Bahia, poderia tê-los vendido também em livrarias portuguesas. Seria um indício da existência de uma empresa familiar que operava nos dois países. Hipótese reforçada pela “Arte da Grammatica Portugueza” impressa na Bahia encontrada em Lisboa.

A pedido de Leão Serva, um pesquisador, Urano Andrade, descobriu novos documentos. Indicam que Silva Serva era negociante registrado na Real Junta de Comércio, morador do Rossio – prova de que mantinha interesses comerciais em Portugal -, e na viagem de volta para a Bahia em 1815 embarcou na galera Tamega, navio propriedade de Manoel José. (É curioso que as autoridades de Lisboa escrevessem que o Tamega era uma “galera” pois esse tipo de embarcação a vela e remo deixara de ser usado séculos antes.)

É levantada a hipótese de que um Bento José da Silva Serva, comerciante da Vila de São Pedro do Sul (atual Rio Grande do Sul), que recebia da Bahia grandes quantidades de livros para vender, fosse o mesmo Bento José Gonçalves Serva que em 1811 era revisor de provas em Salvador na tipografia de Manoel Antonio. Fica a dúvida. Mas pode sugerir que os interesses comerciais de Silva Serva no Brasil não se limitavam à Bahia e ao Rio.

O subtítulo dessa obra diz que Silva Serva é o precursor das fitas do Bonfim. Como o próprio livro informa, as fitas do Bonfim já existiam. Conhecidas como “medidas”, por ter o tamanho do braço da imagem do Senhor do Bonfim, as fitas, mais sofisticadas que hoje, eram feitas de tecidos finos, como seda, e pintadas e bordadas por artistas com o símbolo do santo. Mas estavam pouco disseminadas. O que Silva Serva fez, como tesoureiro da Irmandade do Senhor do Bonfim, foi promover e estimular a venda das “medidas”, um trabalho de marketing que atravessou séculos e cujos efeitos perduram até hoje.

Curiosamente, diz Biaggio Talento, o jornalista baiano que juntou as pontas, “os estudiosos da Igreja na Bahia não sabiam que Silva Serva era o fundador da imprensa baiana. Já os estudiosos da imprensa não sabiam que ele era da Irmandade do Bonfim”.

O autor levanta a hipótese de Silva Serva ter sido maçom. Talvez. Mas a maçonaria brasileira na época era liberal, constitucionalista e a favor da independência, enquanto seu jornal, o “Idade d’Ouro”, defendia o absolutismo e, depois do Grito do Ipiranga, a subordinação do Brasil a Portugal.

O livro menciona que o redator da revista “As Variedades”, Diogo Soares da Silva e Bivar, escrevia da cadeia do Forte de São Pedro e observa que é curioso imaginar que um preso pudesse redigir uma revista literária. Não foi o único caso. João Soares Lisboa, que publicou o “Correio do Rio de Janeiro”, esteve no xadrez durante a última etapa do jornal. Comunicou a seus leitores: “Quem quiser subscrever dirija-se à Cadeia, onde atualmente reside o Redator”.

Leão Serva termina com as palavras de Pablo Iglesias Magalhães de que até agora só arranhamos a história de Manoel Antonio da Silva Serva.

Graficamente, o livro é bem produzido e de leitura fácil. Inclui uma útil relação das publicações impressas pela Typographia de Manoel Antonio da Silva Serva e seus sucessores. O leitor, porém, sente falta de um índice remissivo que o ajude na leitura.

“Um Tipógrafo na Colônia: Vida e Obra de Silva Serva, Precursor da Imprensa no Brasil e das Fitas do Bonfim”.

Leão Serva. Publifolha, 200 págs., R$ 19,90